SEXTOU COM... CIÊNCIAS CRIMINAIS
ADMIRÁVEL MUNDO (VELHO) - THE SOCIETY pt II
Boa noite, pessoal.
Hoje, irei retomar a crítica da semana passada a respeito do programa The Society.
Não pretendia, porém, os restante do seriado me obrigou a escrever algumas linhas, ante a temática penal que tomou conta do show nos episódios que vi.
Eu tinha assistido apenas aos 2 primeiros episódios e estava quase desistindo, mas como sou teimoso, resolvi terminar. São apenas 10 episódios, de 1h cada. Uma tortura que sou capaz de resistir, porque, convenhamos, esse programa é chaaaato demais.
O título deste texto é uma referência ao clássico de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, escrito em 1932.
Em The Society, cerca de uma centena de adolescentes poderiam construir um mundo novo, sem qualquer relação com o passado, porém, alguns eventos históricos são cíclicos, ainda que um grupo de historiadores discorde. Fica a critério de cada um ter sua conclusão.
Nada é melhor que um homicídio para se testar o grau de civilização de uma grupo.
Mas, primeiro, quais seriam os ditos "parâmetros civilizatórios"?
Os episódios 4-5 do seriado serviram para isso.
Como escrevi na semana passada, o direito penal é uma das primeiras expressões do Direito que aparecem em qualquer agrupamento, logo, não irei tratar de sua legitimidade neste texto, mas sim da forma como ele deve(ria) se configurar.
Nós, seres humanos, erramos. E muito! Demais às vezes. E, não raras vezes, repetimos o mesmo erro repetidamente, mesmo querendo mudar.
Freud explica. Porém, iremos deixar o Pai da Psicanálise de lado desta vez.
Em The Society, havia uma forma de estado primitiva naquela sociedade e que estava em vias de afirmação.
Durante esse período, um homicídio ocorre no seio daquele grupo, então, como reagir? Como os adolescentes reagiram?
Teve uma investigação, surgiu um suspeito, ele foi julgado e condenado. Fim.
Fim? Não, para mim, foi apenas o começo de outro fim...
Nos primeiros semestres da faculdade de Direito, aprendemos sobre os princípios, garantias e regras básicas de qualquer ordenamento jurídico, assim como as normas específicas de cada um dos campos do direito (penal, civil, tributário, administrativo...). Podemos não prestar atenção a sua importância até a realidade vir e nos der um golpe e nos fazer acordar.
The Society deu esse golpe, contudo, seu alvo deveria ser outro.
Para quê serve o Direito Penal e Processual Penal afinal de contas?
Para o que aconteceu em The Society não se repita no "mundo real".
Hoje, virou motivo de piada, de ironia, de sarcasmo defender direitos humanos.
Haveria o direito humanos e direitos dos manos. Não vou tratar dessa divisão ridícula, pois ela foi criada por quem não sabe o seu lugar onde vive. Lugar esse que o programa tratou de apresentar de forma bastante clara.
A liberdade é o direito máximo e absoluto de qualquer ser humano. Todo mundo é livre para fazer o que quiser, desde que:
a) não prejudique a liberdade dos outros;
b) haja uma lei que limite essa liberdade em prol do bem comum.
Nenhuma das duas conduções é extravagante. São razoáveis para se viver numa sociedade harmônica. E aqui entra o direito penal.
Se o direito penal existe para proteger bens e valores universais, de modo que as pessoas se sintam ameaçadas por não cumprir as regras e evitem cometer novos delitos, a primeira dessas regras é determinar o que é e o que não é crime.
Esse é o postulado básico da garantia da legalidade e que, em nossa Constituição Federal, encontra-se previsto no art. 5º, XXXIX e XL:
Art.
5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXIX
- não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal;
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o
réu.
Ou seja, cabe ao Estado, através de uma lei, determinar quais condutas são crimes e quais são as respectivas penas. Essa lei deve ser anterior ao cometimento do delito e não pode ser aplicada para punir fatos ocorridos antes de sua edição.
Uma pessoa somente pode ser responsabilizada criminalmente quando sabia que o que fez era crime, quando fez o que era proibido, tendo decidido infringir a lei. Lógico.
Assim, todo mundo, independentemente de raça, idade, sexo, posição social etc, caso faça algo proibido, será punida criminalmente e receberá a mesma pena que outro cidadão.
Assim, espera-se que ninguém cometa crimes, a fim de não ser punido, ou que, depois do seu cometimento, reflita e não faça novamente.
Nossa História é rica em episódios onde pessoas foram condenadas a penas brutais sem qualquer motivo.
A meu ver, a garantia da legalidade é uma das principais conquistas de qualquer sociedade que se considere civilizada.
Prosseguimos.
Entretanto, nessa nova sociedade, não havia um código penal, prevendo crimes e penas. Compreensível, diante da novidade na qual os adolescentes se encontravam.
Eles, então, aplicaram o código penal que conheciam, da antiga sociedade onde viviam, onde, logicamente, homicídio era um delito, sem qualquer sombra de dúvida.
Através do princípio da legalidade, além da previsão de crimes e penas, o estado irá determinar a forma de apuração desses crimes e como serão julgados, de forma que ninguém será tratado de modo diverso.
Essa é a garantia do devido processo legal, prevista no art. 5º, LIII a LVII, CF/88:
LIII
- ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV
- ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal;
LV
- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes;
LVI
- são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII
- ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória;
Cada pessoa saberá quem será o responsável pelo seu julgamento, sem surpresas, tendo um processo justo, com direito à defesa digna e somente irá cumprir a pena quando houver mais possibilidade de recorrer, já que ele pode ser inocente e condenado por erro.
Infelizmente, nada disso foi visto no programa e não havia desculpas para esses erros e equívocos.
Apesar de serem adolescentes, vivemos conectados. Estamos na era da informação, onde qualquer dado está a nossa disposição. E eles tinham livros e outros materiais à mão que pudessem orientá-los em como proceder.
O julgamento pelo júri foi baseado no que eles viam na TV. Compreensível, já que se tratava do primeiro caso criminal do "novo mundo".
Logicamente, a juíza foi a autoridade mais alta dessa sociedade primeva, eis que sua função é, tão-somente, aplicar a pena. Mas qual pena?
O adolescente responsável pela investigação serviu de promotor de justiça, sendo o imbuído da função de acusar o suspeito.
A juíza fez questão que outro adolescente procedesse a defesa do acusado, mas sem entender, exatamente, a importância da função.
O acusado foi indiciado depois de uma denúncia não-anônima e da arma do crime ter sido encontrada consigo, apesar de não se poder exigir uma perícia para comprovar sua culpa, como vimos em programas como CSI, por exemplo. Compreensível. Porém, ele confessou o fato, o que encerrou qualquer dúvida de culpa.
O júri foi composto pelos membros mais seletos dentre eles, ao invés de terem sido escolhidos de forma aleatória. Ao final, ele foi considerado culpado pelos jurados.
Era o momento de determinar sua pena e aplicá-la.
Aqui, a pena foi decidida de forma isolada pela juíza, sem qualquer questionamento pelos demais membros daquele grupo.
A pena cominada foi a de morte, como forma de punir de modo proporcional o infrator e servir de ameaça a novos delitos da mesma natureza.
Obviamente, diante da morte certa, o acusado se arrependeu, mas já era tarde demais.
A pena foi executada.
O modo como cada um dos executores lidou com o fato demanda um texto próprio, já que trata da própria teoria da pena e seus múltiplos desdobramentos.
Por que, então, admirável mundo (velho)?
Porque, depois desse incidente isolado, tais erros não foram corrigidos.
Cada problema penal foi tratado de forma individual, sem previsão legal.
Não havia um código de conduta e de penas a serem seguidos pelo grupo.
Não havia um livro de regras de como agir nos próximos casos.
Não havia respeito ou um mínimo de noção da ideia de legalidade penal.
Academicamente, no âmbito da pura teoria, é irracional se duvidar dessa garantia. Ela é óbvia, lógica, porém, em um programa no qual os protagonistas são adolescentes, sem ideia de um mundo maior que os circunda. Ademais, eles vivem em uma era onde seria normal se esperar que agissem mais mais conhecimento de seus direitos e deveres e tivessem mais noção de direitos e garantias básicas para um viver harmônico.
Ledo engano.
Nenhuma garantia possui autoridade por si só. É preciso que cada uma seja constantemente reafirmada e protegida quando violada, lesada ou ameaçada.
Portanto, direitos humanos x direitos dos manos parece ser uma conclusão compreensível para quem seja de fora do sistema jurídico-penal, mas inadmissível para quem jurou defender os primados de nossa sociedade.
Falta assistir apenas ao último episódio do programa, momento em que, novamente, a Teoria do Estado se mostra mais sensível e tensa.
Talvez haja material para uma nova coluna de direito penal, contudo, pelo "andar da carruagem",não tenho mais fé na série.
Importantes debates sobre direito, política e sociedade poderiam ter sido travados se o foco não fosse as relações (superficiais) dos múltiplos personagens.
Ainda bem que esta temporada acaba no 10º episódio.
No próximo texto vou fazer comentários residuais sobre temas pontuais que apareceram, sendo um deles bem interessante e que está na moda brasileira:
ARMAS.
Até a próxima.