terça-feira, 11 de junho de 2019

DIREITO PENAL

DOLO (EVENTUAL): DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS?

"A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.”
Karl Marx"

Começo o texto de hoje com a ilustrativa frase de Marx, porque ela descreve perfeitamente o tema deste escrito.

Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria/RS, uma casa noturna pegou fogo, vitimando centenas de clientes, sendo o número de mortos quase de 3 (três) centenas.

A causa do incêndio, conforme foi apurado, foi decorrente do uso de fogos de artifício pelos músicos em seu show. As fagulhas atingiram a espuma que servia de isolante sonoro da boate, alastrando-se. Parte dos óbitos se deve à inalação da fumaça e outra em decorrência dos gases venenosos produzidos quando a espuma pegou fogo.

Durante a investigação, apurou-se que a casa possuía alvará de funcionamento, ainda que provisório, e devidamente válido, emitido pelas autoridades competentes, neste caso, o corpo de bombeiros e a prefeitura municipal.

Terminada a investigação, a polícia civil indiciou 16 (dezesseis) pessoas como sendo as responsáveis pelo ocorrido. Contudo, meses depois, apenas 4 (quatro) pessoas foram denunciadas pelos fatos: 2 (dois músicos) e os 2 proprietários do local. Os bombeiros e os agentes públicos responderiam em esferas de responsabilidade distintas.

Todos foram acusados de homicídio e tentativa de homicídio, na forma qualificada, na forma do dolo eventual. Ou seja, os denunciados não tinham a intenção de cometer os delitos diretamente, “mas assumiram o risco”.

Em grau de recurso, as qualificadoras foram afastadas, mantendo-se a tese original de dolo eventual.

Novo recurso foi empregado, tendo sido afastada a imputação a título de dolo eventual. Logo, afastou-se a competência do tribunal do júri para apreciar a matéria, ou seja, o caso será julgado por um juiz de direito, porém, caberá ao Ministério Público ajuizar outra denúncia, reiniciando-se todo o processo do zero.

O Ministério Público recorreu dessa decisão e o processo está aguardando julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sediado em Brasília. A previsão é de que o julgamento ocorra no próxima dia 18 de junho.

Portanto, dentro de exatamente 1 (uma) semana.

Caso Ninho do Urubu

No dia 08 de fevereiro de 2019, contêineres que serviam de alojamento para as categorias do Clube de Regatas Flamengo pegaram fogo, vitimando fatalmente 10 (dez) atletas, enquanto que outros ficaram seriamente feridos.

Hoje, dia 11 de junho de 2019, quatro meses depois, a polícia civil carioca indiciou 8 (oito) pessoas, sendo uma delas o presidente do clube em 2018, e não o atual, o técnico responsável pelo ar-condicionado, engenheiros que construíram os alojamentos e outros funcionários.

Segundo a polícia, todos são responsáveis pelas mortes, na forma do dolo eventual, eis que, em resumo: a) o local não estava autorizado para servir de alojamento, mas sim como estacionamento; b) o clube não possuía as autorizações dos entes públicos para manter alojamentos; c) o clube já havia sido multado inúmeras vezes em virtude desses irregularidades; d) o incêndio ocorreu em virtude de um curto-circuito no equipamento de ar-condicionado que fora mal instalado, além de não receber manutenção periódica; e) inexistência de responsável junto aos atletas para socorro, caso fosse preciso.

Os próximos passos agora serão tomados pelo Ministério Público, a quem compete o ajuizamento da denúncia, dando início ao processo penal em questão, não estando ele obrigado a seguir o indiciamento.

Dois pesos e duas medidas? Não.

Conforme se observa pelo que fora apenas descrito, ambas as situações são muito parecidas, porém, muito diferentes no que realmente importa.

Nos dois casos, as autoridades admitem que não existe dolo direto, a vontade manifesta de matar, de cometer os homicídios. Logo, a discussão fica em torno do conduta, se culposa (sem intenção) ou mediante dolo eventual.

No exemplo da Boate Kiss, não se nega que ocorreu um trágico acidente, quando uma atração do show saiu do controle, não sendo possível tomar outra providência. Tudo aconteceu muito rápido, porém, a casa tinha autorização para funcionar.

A prefeitura e os bombeiros tinham concedido os respectivos alvarás, não podendo os donos da boate serem culpados por algo que não é de sua competência. Além disso, os próprios músicos erraram, também sem intenção, ou vontade de matar. Há muito tempo eles faziam o mesmo show, com fogos de artifício manuais, que todo mundo já viu em casa noturnas, sem qualquer incidente. Logo, por que eles imaginariam que, agora, daria errado?

Toda boate possui lotação acima da permitida e as autoridades sabem disso, mas não fazem absolutamente nada para evitar. Todas elas são campeãs em dar desculpas, ao invés de evitar novos episódios como este.

Por isso, parece-me acertada a decisão do Tribunal de Justiça gaúcho em desclassificar para outro delito, que não seja de competência do tribunal do júri, os fatos ocorridos naquele dia 27 de janeiro de 2013.

Entretanto, o caso do Ninho do Urubu é bastante diferente, causando espanto a todos quando as primeiras notícias foram veiculadas.

Adolescente dormindo em contêineres improvisados porque no clube não havia quartos e alojamentos próprios? E não era uma resposta pontual; há meses aquilo estava acontecendo, sem nunca o clube ter buscado outra solução, ou mesmo autorização para funcionamento. Junto à prefeitura, no lugar dos contêineres, deveria haver um estacionamento, motivo pelo qual nunca houve fiscalização pelas autoridades. O clube, simplesmente, fraudou as regras e estava se beneficiando da omissão das autoridades.

Nesse meio tempo, esse mesmo clube já havia recebido inúmeras multas pelo funcionamento ilegal de outras instalações, mas a “burrocracia” impediu que o local fosse interditado.

O presidente do clube é indiciado por ser, obviamente, o responsável por tudo o que ocorre nas dependências, sendo ele quem tem o poder de determinar ou não o prosseguimento das atividades, dando seu aval. Assim também são responsáveis os engenheiros, profissionais altamente qualificados que, por seu mister, têm a obrigação de seguir a lei quando se trata de seu ofício, já que todos tinham plena ciência das irregularidades dos alojamentos. Um ar-condicionado instalado “nas coxas”, fora dos padrões mínimos de segurança é uma bomba-relógio prestes a explodir, especialmente em nosso verão quente, quando é mais utilizado, além de ter sido instalado em um lugar fechado e que servia de quarto para vários adolescentes dormirem.

De um lado, temos pessoas que erraram, por culpa, mas que estavam com todos os “papeis em dia”. Do outro lado, temos um monte de irregularidades, sendo uma tragédia anunciada.

Em ambos os casos, nenhum dos responsáveis quis que as mortes acontecessem, porém, é visível quem “errou mais”, isto é, quem, cuja conduta negligente, omissa, ou pior, contribuiu mais para os acontecimentos.

Tais reflexões acima são apenas um dos vários pontos que serão abordados. Ou que deveriam ser, em casos de grande repercussão.

São casos como esses, difíceis, problemáticos, que servem para colocar a teoria que estudamos na faculdade à prova, além de testar o compromisso dos juízes, delegados, promotores e todo o sistema.

O sistema serve ao Direito ou a outros interesses?

Concluo o texto de hoje com uma pequena confissão.

Tenho um carinho especial pelo instituto do dolo, já que ele foi meu tema do TCC da graduação, mas que abandonei em virtude de outro interesse romântico acadêmico. Contudo, sempre que posso, interesso-me em ler casos em que esta discussão sempre é travada. O caso Boate Kiss é um de meus proferidos e o julgamento do STJ na semana que vem será emblemático.

O dolo é um instituto de direito penal ainda pouco estudado no Brasil, com a profundidade necessária, ao contrário do que ocorre na Europa. Em nível de julgamentos, a situação é ainda pior, já que não existe um mínimo de compreensão judicial sobre ele; cada um decide como quer.

Portanto, a quem interessar possa, indico algumas leituras mais modernas sobre o assunto. Trata-se de tema de domínio obrigatório a qualquer profissional das ciências penais.

Dissertações:

A problemática do dolo (eventual) no direito penal contemporâneo, de Wilson Franck Junior

Sobre o estado atual da dogmática do dolo, de Guilherme Francisco Ceolin

Livros:

Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil, Guilherme Brenner Lucchesi

Dolo como compromisso cognitivo, de Eduardo Viana

Dolo e direito penal: modernas tendências, de Paulo César Busato (coord.)

Links:

Veja quem são os indiciados pelo incêndio na boate Kiss

Acompanhamento do processo Boate Kiss – TJRS

Atletas da base do Flamengo morrem em incêndio no CT Ninho do Urubu

Polícia indicia ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello e outras 7 pessoas por homicídios no CT do Flamengo




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