DIREITO
PENAL
DOLO (EVENTUAL): DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS?
"A história se repete, a primeira vez
como tragédia e a segunda como farsa.”
Karl Marx"
Começo o texto de hoje com a ilustrativa
frase de Marx, porque ela descreve perfeitamente o tema deste escrito.
Boate
Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, na
cidade de Santa Maria/RS, uma casa noturna pegou fogo, vitimando centenas de
clientes, sendo o número de mortos quase de 3 (três) centenas.
A causa do incêndio, conforme foi apurado,
foi decorrente do uso de fogos de artifício pelos músicos em seu show. As
fagulhas atingiram a espuma que servia de isolante sonoro da boate,
alastrando-se. Parte dos óbitos se deve à inalação da fumaça e outra em
decorrência dos gases venenosos produzidos quando a espuma pegou fogo.
Durante a investigação, apurou-se que a casa
possuía alvará de funcionamento, ainda que provisório, e devidamente válido,
emitido pelas autoridades competentes, neste caso, o corpo de bombeiros e a prefeitura
municipal.
Terminada a investigação, a polícia civil
indiciou 16 (dezesseis) pessoas como sendo as responsáveis pelo ocorrido. Contudo,
meses depois, apenas 4 (quatro) pessoas foram denunciadas pelos fatos: 2 (dois
músicos) e os 2 proprietários do local. Os bombeiros e os agentes públicos
responderiam em esferas de responsabilidade distintas.
Todos foram acusados de homicídio e tentativa
de homicídio, na forma qualificada, na forma do dolo eventual. Ou seja, os
denunciados não tinham a intenção de cometer os delitos diretamente, “mas
assumiram o risco”.
Em grau de recurso, as qualificadoras foram
afastadas, mantendo-se a tese original de dolo eventual.
Novo recurso foi empregado, tendo sido afastada
a imputação a título de dolo eventual. Logo, afastou-se a competência do
tribunal do júri para apreciar a matéria, ou seja, o caso será julgado por um
juiz de direito, porém, caberá ao Ministério Público ajuizar outra denúncia,
reiniciando-se todo o processo do zero.
O Ministério Público recorreu dessa decisão e
o processo está aguardando julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ),
sediado em Brasília. A previsão é de que o julgamento ocorra no próxima dia 18
de junho.
Portanto, dentro de exatamente 1 (uma)
semana.
Caso
Ninho do Urubu
No dia 08 de fevereiro de 2019, contêineres que
serviam de alojamento para as categorias do Clube de Regatas Flamengo pegaram
fogo, vitimando fatalmente 10 (dez) atletas, enquanto que outros ficaram
seriamente feridos.
Hoje, dia 11 de junho de 2019, quatro meses
depois, a polícia civil carioca indiciou 8 (oito) pessoas, sendo uma delas o
presidente do clube em 2018, e não o atual, o técnico responsável pelo
ar-condicionado, engenheiros que construíram os alojamentos e outros
funcionários.
Segundo a polícia, todos são responsáveis
pelas mortes, na forma do dolo eventual, eis que, em resumo: a) o local não
estava autorizado para servir de alojamento, mas sim como estacionamento; b) o
clube não possuía as autorizações dos entes públicos para manter alojamentos;
c) o clube já havia sido multado inúmeras vezes em virtude desses irregularidades;
d) o incêndio ocorreu em virtude de um curto-circuito no equipamento de
ar-condicionado que fora mal instalado, além de não receber manutenção
periódica; e) inexistência de responsável junto aos atletas para socorro, caso
fosse preciso.
Os próximos passos agora serão tomados pelo
Ministério Público, a quem compete o ajuizamento da denúncia, dando início ao
processo penal em questão, não estando ele obrigado a seguir o indiciamento.
Dois
pesos e duas medidas? Não.
Conforme se observa pelo que fora apenas
descrito, ambas as situações são muito parecidas, porém, muito diferentes no
que realmente importa.
Nos dois casos, as autoridades admitem que
não existe dolo direto, a vontade manifesta de matar, de cometer os homicídios.
Logo, a discussão fica em torno do conduta, se culposa (sem intenção) ou
mediante dolo eventual.
No exemplo da Boate Kiss, não se nega que ocorreu um trágico acidente,
quando uma atração do show saiu do controle, não sendo possível tomar outra
providência. Tudo aconteceu muito rápido, porém, a casa tinha autorização
para funcionar.
A prefeitura e os bombeiros tinham concedido
os respectivos alvarás, não podendo os donos da boate serem culpados por algo
que não é de sua competência. Além disso, os próprios músicos erraram, também
sem intenção, ou vontade de matar. Há muito tempo eles faziam o mesmo show, com
fogos de artifício manuais, que todo mundo já viu em casa noturnas, sem
qualquer incidente. Logo, por que eles imaginariam que, agora, daria errado?
Toda boate possui lotação acima da permitida
e as autoridades sabem disso, mas não fazem absolutamente nada para evitar.
Todas elas são campeãs em dar desculpas, ao invés de evitar novos episódios
como este.
Por isso, parece-me acertada a decisão do
Tribunal de Justiça gaúcho em desclassificar para outro delito, que não seja de
competência do tribunal do júri, os fatos ocorridos naquele dia 27 de janeiro
de 2013.
Entretanto, o caso do Ninho do Urubu é bastante diferente, causando espanto a
todos quando as primeiras notícias foram veiculadas.
Adolescente dormindo em contêineres improvisados
porque no clube não havia quartos e alojamentos próprios? E não era uma
resposta pontual; há meses aquilo estava acontecendo, sem nunca o clube ter
buscado outra solução, ou mesmo autorização para funcionamento. Junto à
prefeitura, no lugar dos contêineres, deveria haver um estacionamento, motivo
pelo qual nunca houve fiscalização pelas autoridades. O clube, simplesmente,
fraudou as regras e estava se beneficiando da omissão das autoridades.
Nesse meio tempo, esse mesmo clube já havia
recebido inúmeras multas pelo funcionamento ilegal de outras instalações, mas a
“burrocracia” impediu que o local fosse interditado.
O presidente do clube é indiciado por ser,
obviamente, o responsável por tudo o que ocorre nas dependências, sendo ele
quem tem o poder de determinar ou não o prosseguimento das atividades, dando
seu aval. Assim também são responsáveis os engenheiros, profissionais altamente
qualificados que, por seu mister, têm a obrigação de seguir a lei quando se
trata de seu ofício, já que todos tinham plena ciência das irregularidades dos
alojamentos. Um ar-condicionado instalado “nas coxas”, fora dos padrões mínimos
de segurança é uma bomba-relógio prestes a explodir, especialmente em nosso
verão quente, quando é mais utilizado, além de ter sido instalado em um lugar
fechado e que servia de quarto para vários adolescentes dormirem.
De um lado, temos pessoas que erraram, por
culpa, mas que estavam com todos os “papeis em dia”. Do outro lado, temos um
monte de irregularidades, sendo uma tragédia anunciada.
Em ambos os casos, nenhum dos responsáveis
quis que as mortes acontecessem, porém, é visível quem “errou mais”, isto é,
quem, cuja conduta negligente, omissa, ou pior, contribuiu mais para os
acontecimentos.
Tais reflexões acima são apenas um dos vários
pontos que serão abordados. Ou que deveriam ser, em casos de grande
repercussão.
São casos como esses, difíceis,
problemáticos, que servem para colocar a teoria que estudamos na faculdade à
prova, além de testar o compromisso dos juízes, delegados, promotores e todo o
sistema.
O sistema serve ao Direito ou a outros interesses?
Concluo o texto de hoje com uma pequena
confissão.
Tenho um carinho especial pelo instituto do
dolo, já que ele foi meu tema do TCC da graduação, mas que abandonei em virtude
de outro interesse romântico acadêmico. Contudo, sempre que posso, interesso-me
em ler casos em que esta discussão sempre é travada. O caso Boate Kiss é um de
meus proferidos e o julgamento do STJ na semana que vem será emblemático.
O dolo é um instituto de direito penal ainda
pouco estudado no Brasil, com a profundidade necessária, ao contrário do que
ocorre na Europa. Em nível de julgamentos, a situação é ainda pior, já que não
existe um mínimo de compreensão judicial sobre ele; cada um decide como quer.
Portanto, a quem interessar possa, indico
algumas leituras mais modernas sobre o assunto. Trata-se de tema de domínio
obrigatório a qualquer profissional das ciências penais.
Dissertações:
A
problemática do dolo (eventual) no direito penal contemporâneo, de
Wilson Franck Junior
Sobre o estado atual da dogmática do dolo, de
Guilherme Francisco Ceolin
Livros:
Punindo
a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil, Guilherme
Brenner Lucchesi
Dolo
como compromisso cognitivo, de Eduardo Viana
Dolo
e direito penal: modernas tendências, de Paulo César Busato
(coord.)
Links:
Veja quem são os indiciados pelo incêndio na
boate Kiss
Acompanhamento do processo Boate Kiss – TJRS
Atletas da base do Flamengo morrem em
incêndio no CT Ninho do Urubu
Polícia indicia ex-presidente Eduardo Bandeira
de Mello e outras 7 pessoas por homicídios no CT do Flamengo