SEXTOU... COM CIÊNCIAS CRIMINAIS
"THE SOCIETY" PARA QUÊ(M)?
Devido a motivos estranhos a este que vos escreve, mas previsíveis, não pude dar continuidade ao texto sobre (in)imputabilidade, abordando algumas questões processuais. Tudo será explicado a seu devido tempo.
Por coincidência, o que não existe, esse seriado é um bom exemplo do meu texto anterior sobre inimputabilidade penal.
Assim, hoje irei dar uma pausa estratégica no assunto rotineiro dos textos do final de semana e irei fazer alguns breves comentários sobre um seriado que estreou recentemente na Netflix e que tem sido bastante divulgada nas redes sociais.
Vamos lá então.
THE SOCIETY
Como o próprio titulo sugere, o tema central é sobre "a sociedade", porém, irei mais adiante e contarei o núcleo central da história, mas sem spoilers.
A trama se passa em uma cidade mediana no interior dos Estados Unidos chamada West Ham (sim, o mesmo do clube de futebol inglês...). Um estranho e misterioso cheiro impregna a cidade. Todos os adolescentes do local fazem uma pequena excursão mal explicada e, ao acordarem na volta, veem-se sozinhos, sem os adultos, crianças ou mesmo seus animais. Apenas, eles, os adolescentes, estão na cidade. A localidade encontra-se isolada do mundo e todas as saídas estão fechadas. O telefone funciona apenas nos limites de West Ham. Ainda existe luz elétrica. Telefone e internet? Não esclarecidos.
Por que resolvi assistir a The society?
Não costumo assistir aos seriados do momento, salvo se eu estivesse esperando por eles ou fosse de um gênero que gosto. Prefiro esperar passar a hype, o empolgação inicial, ler as críticas, sentir a recepção média e depois me aventurar.
Contudo, tendo em vista o plot do enredo, decidi dar uma chance para saber se os criadores saberiam produzir algo novo, algo inovador com este tema quase batido.
Vi apenas dos 2 primeiros episódios, aqueles que, em regra, prendem o espectador e, bem, o resultado foi desanimador.
Não posso deixar de comparar The society com outros seriados parecidos, como Lost, Under the Dome (Sob a redoma) e The 100 (Os cem). Existem outros tantos, mas apenas assisti a esses e que me lembro, por ora.
Todos esses programas possuem algo em comum e que me atrai como jurista criminal: a relação do homem, da sociedade com o crime.
Em Lost, um grupo de adultos, sobreviventes de um acidente aéreo, encontram-se em uma ilha misteriosa, tentando sobreviver ao local e a si próprios. Aqui, temos diversas etnias, gêneros, idades... Um variado leque social.
Em Under the Dome, uma pequena cidade vê-se aprisionada dentro de um domo invisível, sem origem. Nesse contexto, os habitantes da localidade tentam se adaptar as novas condições, sejam elas sociais ou materiais. Aqui, existem adultos, crianças, idosos, animais, forasteiros etc... Como toda cidade.
Em Under the Dome, uma pequena cidade vê-se aprisionada dentro de um domo invisível, sem origem. Nesse contexto, os habitantes da localidade tentam se adaptar as novas condições, sejam elas sociais ou materiais. Aqui, existem adultos, crianças, idosos, animais, forasteiros etc... Como toda cidade.
Em Os 100, um grupo de 100 adolescentes, todos infratores, é abandonado na Terra para reabitar o planeta, após uma guerra nuclear. Os adultos ficam apenas olhando os adolescentes se adaptarem ao novo ambiente e a si próprios. As idades são semelhantes, sem crianças, e as etnias e raças são suficientemente variadas.
Em The society, obviamente, o grupo é de cerca de algumas dezenas de adolescentes, ainda sem sua cidade natal, com tudo à mão, mas sem adultos e crianças. O seriado pretende mostrar como essa "sociedade" irá se desenvolver.
E aqui eu relaciono todos os temas deste blog.
O que eu espero desses programas?
Ponto 01: a criação do Estado
Aqui, eu espero ver como os roteiristas lidam com questões comuns à disciplina de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, cadeiras básicas em qualquer faculdade de Direito.
Que "desculpa" eles utilizarão para justificar a criação de uma figura, semelhante ao nosso "estado" nesses agrupamentos humanos? Até mesmo em Under the Dome, onde existe uma estado oficial, é normal que a autoridade original, derivada da oficialidade, perca legitimidade e seja substituída por outro poder mais autêntico ou aceito pela comunidade.
Aqui, impossível não se recordar dos 3 tipos de dominação estudas pelo sociólogo Max Weber: a) racional; b) tradicional; c) carismática.
Não me recordo se existiu um "estado" em Lost, porém, lembro que Jack, Kate, Sawyer e Locke eram os chefes dos sobreviventes, em maior ou menor grau. Sua liderança foi carismática e aceita pelos demais naturalmente, eis que ofereceram-se como lideranças antes os problemas enfrentados pelo grupo.
Algo parecido ocorre em Os 100. Os personagens que "dão a cara para bater" acabam a assumindo a liderança natural dos demais e que se mantém pelo seu carisma. Em ambos os casos, eles não possuem o poder de impor sua vontade, contudo, sua autoridade é suficientemente reconhecida para que seja aceita pelos demais.
Under the dome possui uma peculiaridade. A história toda se passa em 3-4 dias, portanto, não há tempo suficiente para a criação de um "estado". Porém, as figuras de liderança são escolhidas pelo carisma e pela tradição. Um dos líderes já é um dos chefes políticos da localidade e o outro é o líder aventureiro, que guia o grupo nos momentos difíceis.
Entre os episódios 1 e 2, passam-se 10 dias e NADA acontece... Uma das adolescentes tenta imbuir-se de uma autoridade provisória, conquistada pelo carisma e por ser a "líder estudantil" antes do evento, contudo, outro adolescente, munido de uma arma de fogo, contesta essa autoridade. Estamos diante de duas teorias sobre o estado: autoridade x império.
Ela seria a líder, a autoridade, mas sem o poder de império e impor sua vontade; ele, não tem autoridade, mas possui império. Nesse dilema, a sociedade dos jovens fica sem líder.
Depois de 10 dias, nada acontece e todos vivem livremente, sem um líder.
Aqui, faço um pequeno contraponto: em todos os programas, os personagens não são "homens das cavernas", seres incultos e apolíticos. Todos foram criados sob uma forma de sociedade e, portanto, é natural que tendam a agir conforme sua criação, já que essa é a única forma de conhecem de sociabilidade. Porém, diante desse passo inicial, os personagens podem discutir o tipo de sociedade na qual viveram, debatendo o que "funcionou" e o que "não funcionava".
Logo, não se aplica, aqui, a teoria em sua pureza, pois os personagens nunca se encontraram no mais absoluto estado de natureza animal.
Ponto 02: o surgimento do direito penal
Superado o degrau anterior, é o momento da estabilização desse "estado", essa figura abstrata que age em nome de todos, em prol da governabilidade geral. Só que, naturalmente, como vivemos em sociedade, conflitos aparecem e, por consequência, a necessidade de se discutir a punição dessas infrações e as funções da pena.
O direito pena aparece quase que concomitante ao estado e, justamente, para legitimar tal necessidade punitiva. O estado, o terceiro, agindo em prol do grupo, sem individualizações. O estado não existe para instituir regras de direito civil, de família, trabalhista, tributário, administrativo... Sua função é, tao-somente, aplicar o direito penal de forma legítima.
Se todos, livres, se respeitarem, não violarem os direitos fundamentais dos demais e observarem mutuamente seus deveres, não existe a necessidade de interferência do "estado".
Novamente, outro porém. Todos os personagens já tinham uma noção de direito penal, logo, não foi preciso teorizá-lo e legitimá-lo do nada. Simplesmente era mais fácil e natural continuar replicando as regras que conheciam. Os tipos penais ainda seriam os mesmos, assim como as penas respectivas, com exceções e adaptações, naturalmente...
Depois de 10 dias em The society... NADA...
Ponto 03: Do processo penal
Existe um estado para punir e um direito penal que especifique essas punições. Agora, é preciso haver um justo processo penal para julgar os acusados.
Diferentemente de nossa própria sociedade, onde direitos e garantias foram conceitos e ideias que se desenvolveram ao longo do tempo, após muito estudo e reflexão, em todos os seriados, muitas das questões originais já foram superadas e sequer são discutidas.
A "desumanidade" original não existe mais, apesar de haver um que outro episódio onde se pretende punir um infrator sem um julgamento que serve apenas para atrasar a justiça.
Tais debates são interessantes de se ver porque, no fundo, ainda existe esse fogo em nossa sociedade. A maioria das normas jurídicas não é fruto do pensamento e do consenso popular, mas sim vieram da mente de alguns ilustres e que, ao tomar o poder, as impuseram aos demais. Não houve discussão, apenas a sua determinação. Porém, muitas dessas ideias não são irracionais, já que elas valem para todos (eu, tu, ele, nós, eles). Se é bom para mim, é para ti.
A minha garantia, o meu direito é justo e se aplica a todos. Porém, ainda existe o natural e compreensível entendimento de que os direitos valem apenas para mim, uma pessoa boa, e não aos meus inimigos, aos bandidos e criminosos (eles). Esse amadurecimento social e cultural é o que nos diferencia como sociedade, como comunidade e dos próprios animais.
Cada personagem assume seu papel ao representar as diferentes visões sobre o processo penal e, ao final, prevalece aquela mais semelhante ao país de origem do seriado. Neste caso, os Estados Unidos, obviamente.
Ponto 04: polícia
Se existe estado, existe direito penal, processo penal e, por consequência, uma força policial, a fim de manter a lei e a ordem.
A polícia é uma constante em toda sociedade, mudando apenas suas funções muito específicas, seus limites e modus operandi.
Em Under the dome, a polícia é aquele que já existia e reforçada, provisoriamente, por alguns voluntários, sob chanceladas autoridades de dentro da redoma.
Em Os 100, a "polícia" é formada por um grupo de adolescentes voluntários.
Não me lembro se em Lost tinha algo semelhante.
Em The society, existe "a guarda", igual a Os 100...
Ponto 05: imputabilidade
Por fim, a ligação com o tema desta semana, a respeito da (in)imputabilidade penal.
E isso que me chama atenção neste tipo de seriado, com temática semelhante.
Em Lost e Under the dome, a maioria dos personagens são adultos. Espera-se que eles sejam mais racionais e menos emotivos, pensando a longo prazo e que não sejam guiados pelos ganhos de curto e médio prazo. Suas tramas e perspectivas sobre os problemas são mais complexos e profundos e toda decisão envolve mais de um fator. Apesar de ser ficção, isso realmente ocorre nestes seriados em exame. O problema mais simples e ordinário do cotidiano não se resolve em instantes, já que toda escolha traz consequências para todo mundo. Aqui, os principais personagens são imputáveis e respondem pelas suas ações, ainda que as circunstâncias dessas escolhas atenuem as consequências.
Porém, tanto em Os 100 quanto em The society, os protagonistas são "aborrescentes" na flor da vida, pouco antes de se tornarem legalmente adultos e imputáveis. São, ainda, tecnicamente inimputáveis e suas histórias, mesmo que ficcionais, são suficientes para exemplificar os motivos de tratarmos os adolescentes de forma diferente dos adultos.
Na maioria das situações de descontrole, de pressão e estresse, os personagens agem de forma emotiva, impulsiva, visando atender a desejos imediatos, sem planejamento longo. Não se pode culpar adolescentes por serem adolescentes. Logo, quando um jovem encontra-se em uma situação difícil, ele até pode compreender o que esteja ocorrendo, mas não consegue analisar todas as possibilidades médias e o alcance dessas consequências, não com a mesma maturidade de um adulto.
Isso é normal da adolescência e todos já tivemos essa idade e, por mais "maduros" que pensássemos ser, ainda cometíamos erros de julgamento que hoje consideramos banais, idiotas. Qualquer problema era "o" problema, uma questão de vida ou morte.
Entretanto, em ambas as séries, os dois grupos de adolescentes estão praticamente sozinhos, sem supervisão a agem como jovens adultos, sem os ímpetos e características da juventude, o que estraga o núcleo principal dos seriados. Tanto Os 100 quanto The society pecam no mesmo erro, o que é uma pena
Em Os 100, tivemos conflitos com algumas horas na Terra; mas em The society, foram precisos dias para que os hormônios viesses à tona e os jovens agissem como adolescentes normais, isto é, brigassem discutissem, namorassem, dessem atenção aos seus desejos, sem se preocupar com moral e ética. Nesse sentido, penso que tipo de sociedade vai ser formar, já que a maioria dos jovens se mostra boazinha, sem impulsos e tremendamente racional (dentro dos limites).
Espero que os próximos 8 episódios, de 1h cada, façam com que eu me arrependa destas críticas iniciais.
Nos demais seriados, eventos fantásticos impediram que as sociedades primitivas se desenvolvessem normalmente. O campo de observação ficou na vontade, já que, certamente, os roteiristas não tinham experiência neste tipo de situação.
Porém, ao que parece, em The society, o foco é justamente esse: um mundo sem adultos.
E aqui termino este texto, com uma provocação.
lembrei de mais um mundo semelhante, e com um MAS significativo: a Terra do Nunca.
Em que tipo de sociedade viviam os meninos perdidos, sob a liderança carismática (e única) de Peter Pan? Quais eram as regras? O que era permitido e o que era proibido? Quem tinha o poder de polícia? Quais eram as punições? Os meninos perdidos não eram adolescentes, mas sim crianças, logo, mais alienadas ainda de qualquer norma social. Os adultos eram os piratas e inimigos.
São muitas reflexões...
Até a próxima.
Assim,
Links: