sexta-feira, 31 de maio de 2019

SEXTOU... COM CIÊNCIAS CRIMINAIS

"THE SOCIETY" PARA QUÊ(M)?

Devido a motivos estranhos a este que vos escreve, mas previsíveis, não pude dar continuidade ao texto sobre (in)imputabilidade, abordando algumas questões processuais. Tudo será explicado a seu devido tempo.

Por coincidência, o que não existe, esse seriado é um bom exemplo do meu texto anterior sobre inimputabilidade penal.

Assim, hoje irei dar uma pausa estratégica no assunto rotineiro dos textos do final de semana e irei fazer alguns breves comentários sobre um seriado que estreou recentemente na Netflix e que tem sido bastante divulgada nas redes sociais.

Vamos lá então.

THE SOCIETY




Como o próprio titulo sugere, o tema central é sobre "a sociedade", porém, irei mais adiante e contarei o núcleo central da história, mas sem spoilers.

A trama se passa em uma cidade mediana no interior dos Estados Unidos chamada West Ham (sim, o mesmo do clube de futebol inglês...). Um estranho e misterioso cheiro impregna a cidade. Todos os adolescentes do local fazem uma pequena excursão mal explicada e, ao acordarem na volta, veem-se sozinhos, sem os adultos, crianças ou mesmo seus animais. Apenas, eles, os adolescentes, estão na cidade. A localidade encontra-se isolada do mundo e todas as saídas estão fechadas. O telefone funciona apenas nos limites de West Ham. Ainda existe luz elétrica. Telefone e internet? Não esclarecidos. 

Por que resolvi assistir a The society?

Não costumo assistir aos seriados do momento, salvo se eu estivesse esperando por eles ou fosse de um gênero que gosto. Prefiro esperar passar a hype, o empolgação inicial, ler as críticas, sentir a recepção média e depois me aventurar.

Contudo, tendo em vista o plot do enredo, decidi dar uma chance para saber se os criadores saberiam produzir algo novo, algo inovador com este tema quase batido.

Vi apenas dos 2 primeiros episódios, aqueles que, em regra, prendem o espectador e, bem, o resultado foi desanimador.

Não posso deixar de comparar The society com outros seriados parecidos, como Lost, Under the Dome (Sob a redoma) e The 100 (Os cem). Existem outros tantos, mas apenas assisti a esses e que me lembro, por ora.

Todos esses programas possuem algo em comum e que me atrai como jurista criminal: a relação do homem, da sociedade com o crime.

Em Lost, um grupo de adultos, sobreviventes de um acidente aéreo, encontram-se em uma ilha misteriosa, tentando sobreviver ao local e a si próprios. Aqui, temos diversas etnias, gêneros, idades... Um variado leque social.

Em Under the Dome, uma pequena cidade vê-se aprisionada dentro de um domo invisível, sem origem. Nesse contexto, os habitantes da localidade tentam se adaptar as novas condições, sejam elas sociais ou materiais. Aqui, existem adultos, crianças, idosos, animais, forasteiros etc... Como toda cidade.

Em Os 100, um grupo de 100 adolescentes, todos infratores, é abandonado na Terra para reabitar o planeta, após uma guerra nuclear. Os adultos ficam apenas olhando os adolescentes se adaptarem ao novo ambiente e a si próprios. As idades são semelhantes, sem crianças, e as etnias e raças são suficientemente variadas.

Em The society, obviamente, o grupo é de cerca de algumas dezenas de adolescentes, ainda sem sua cidade natal, com tudo à mão, mas sem adultos e crianças. O seriado pretende mostrar como essa "sociedade" irá se desenvolver.

E aqui eu relaciono todos os temas deste blog.

O que eu espero desses programas?

Ponto 01: a criação do Estado

Aqui, eu espero ver como os roteiristas lidam com questões comuns à disciplina de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, cadeiras básicas em qualquer faculdade de Direito.

Que "desculpa" eles utilizarão para justificar a criação de uma figura, semelhante ao nosso "estado" nesses agrupamentos humanos? Até mesmo em Under the Dome, onde existe uma estado oficial, é normal que a autoridade original, derivada da oficialidade, perca legitimidade e seja substituída por outro poder mais autêntico ou aceito pela comunidade. 

Aqui, impossível não se recordar dos 3 tipos de dominação estudas pelo sociólogo Max Weber: a) racional; b) tradicional; c) carismática.

Não me recordo se existiu um "estado" em Lost, porém, lembro que Jack, Kate, Sawyer e Locke eram os chefes dos sobreviventes, em maior ou menor grau. Sua liderança foi carismática e aceita pelos demais naturalmente, eis que ofereceram-se como lideranças antes os problemas enfrentados pelo grupo.

Algo parecido ocorre em Os 100. Os personagens que "dão a cara para bater" acabam a assumindo a liderança natural dos demais e que se mantém pelo seu carisma. Em ambos os casos, eles não possuem o poder de impor sua vontade, contudo, sua autoridade é suficientemente reconhecida para que seja aceita pelos demais.

Under the dome possui uma peculiaridade. A história toda se passa em 3-4 dias, portanto, não há tempo suficiente para a criação de um "estado". Porém, as figuras de liderança são escolhidas pelo carisma e pela tradição. Um dos líderes já é um dos chefes políticos da localidade e o outro é o líder aventureiro, que guia o grupo nos momentos difíceis. 

Entre os episódios 1 e 2, passam-se 10 dias e NADA acontece... Uma das adolescentes tenta imbuir-se de uma autoridade provisória, conquistada pelo carisma e por ser a "líder estudantil" antes do evento, contudo, outro adolescente, munido de uma arma de fogo, contesta essa autoridade. Estamos diante de duas teorias sobre o estado: autoridade x império.

Ela seria a líder, a autoridade, mas sem o poder de império e impor sua vontade; ele, não tem autoridade, mas possui império.  Nesse dilema, a sociedade dos jovens fica sem líder.

Depois de 10 dias, nada acontece e todos vivem livremente, sem um líder.

Aqui, faço um pequeno contraponto: em todos os programas, os personagens não são "homens das cavernas", seres incultos e apolíticos. Todos foram criados sob uma forma de sociedade e, portanto, é natural que tendam a agir conforme sua criação, já que essa é a única forma de conhecem de sociabilidade. Porém, diante desse passo inicial, os personagens podem discutir o tipo de sociedade na qual viveram, debatendo o que "funcionou" e o que "não funcionava".

Logo, não se aplica, aqui, a teoria em sua pureza, pois os personagens nunca se encontraram no mais absoluto estado de natureza animal.

Ponto 02: o surgimento do direito penal

Superado o degrau anterior, é o momento da estabilização desse "estado", essa figura abstrata que age em nome de todos, em prol da governabilidade geral. Só que, naturalmente, como vivemos em sociedade, conflitos aparecem e, por consequência, a necessidade de se discutir a punição dessas infrações e as funções da pena.

O direito pena aparece quase que concomitante ao estado e, justamente, para legitimar tal necessidade punitiva. O estado, o terceiro, agindo em prol do grupo, sem individualizações. O estado não existe para instituir regras de direito civil, de família, trabalhista, tributário, administrativo... Sua função é, tao-somente, aplicar o direito penal de forma legítima.

Se todos, livres, se respeitarem, não violarem os direitos fundamentais dos demais e observarem mutuamente seus deveres, não existe a necessidade de interferência do "estado". 

Novamente, outro porém. Todos os personagens já tinham uma noção de direito penal, logo, não foi preciso teorizá-lo e legitimá-lo do nada. Simplesmente era mais fácil e natural continuar replicando as regras que conheciam. Os tipos penais ainda seriam os mesmos, assim como as penas respectivas, com exceções e adaptações, naturalmente...

Depois de 10 dias em The society... NADA...

Ponto 03: Do processo penal

Existe um estado para punir e um direito penal que especifique essas punições. Agora, é preciso haver um justo processo penal para julgar os acusados. 

Diferentemente de nossa própria sociedade, onde direitos e garantias foram conceitos e ideias que se desenvolveram ao longo do tempo, após muito estudo e reflexão, em todos os seriados, muitas das questões originais já foram superadas e sequer são discutidas. 

A "desumanidade" original não existe mais, apesar de haver um que outro episódio onde se pretende punir um infrator sem um julgamento que serve apenas para atrasar a justiça.

Tais debates são interessantes de se ver porque, no fundo, ainda existe esse fogo em nossa sociedade. A maioria das normas jurídicas não é fruto do pensamento e do consenso popular, mas sim vieram da mente de alguns ilustres e que, ao tomar o poder, as impuseram aos demais. Não houve discussão, apenas a sua determinação. Porém, muitas dessas ideias não são irracionais, já que elas valem para todos (eu, tu, ele, nós, eles). Se é bom para mim, é para ti.

A minha garantia, o meu direito é justo e se aplica a todos. Porém, ainda existe o natural e compreensível entendimento de que os direitos valem apenas para mim, uma pessoa boa, e não aos meus inimigos, aos bandidos e criminosos (eles). Esse amadurecimento social e cultural é o que nos diferencia como sociedade, como comunidade e dos próprios animais. 

Cada personagem assume seu papel ao representar as diferentes visões sobre o processo penal e, ao final, prevalece aquela mais semelhante ao país de origem do seriado. Neste caso, os Estados Unidos, obviamente. 

Ponto 04: polícia

Se existe estado, existe direito penal, processo penal e, por consequência, uma força policial, a fim de manter a lei e a ordem. 

A polícia é uma constante em toda sociedade, mudando apenas suas funções muito específicas, seus limites e modus operandi.

Em Under the dome, a polícia é aquele que já existia e reforçada, provisoriamente, por alguns voluntários, sob chanceladas autoridades de dentro da redoma.

Em Os 100, a "polícia" é formada por um grupo de adolescentes voluntários.

Não me lembro se em Lost tinha algo semelhante.

Em The society, existe "a guarda", igual a Os 100...

Ponto 05: imputabilidade

Por fim, a ligação com o tema desta semana, a respeito da (in)imputabilidade penal.

E isso que me chama atenção neste tipo de seriado, com temática semelhante.

Em Lost e Under the dome, a maioria dos personagens são adultos. Espera-se que eles sejam mais racionais e menos emotivos, pensando a longo prazo e que não sejam guiados pelos ganhos de curto e médio prazo. Suas tramas e perspectivas sobre os problemas são mais complexos e profundos e toda decisão envolve mais de um fator. Apesar de ser ficção, isso realmente ocorre nestes seriados em exame. O problema mais simples e ordinário do cotidiano não se resolve em instantes, já que toda escolha traz consequências para todo mundo. Aqui, os principais personagens são imputáveis e respondem pelas suas ações, ainda que as circunstâncias dessas escolhas atenuem as consequências.

Porém, tanto em Os 100 quanto em The society, os protagonistas são "aborrescentes" na flor da vida, pouco antes de se tornarem legalmente adultos e imputáveis. São, ainda, tecnicamente inimputáveis e suas histórias, mesmo que ficcionais, são suficientes para exemplificar os motivos de tratarmos os adolescentes de forma diferente dos adultos.

Na maioria das situações de descontrole, de pressão e estresse, os personagens agem de forma emotiva, impulsiva, visando atender a desejos imediatos, sem planejamento longo. Não se pode culpar adolescentes por serem adolescentes. Logo, quando um jovem encontra-se em uma situação difícil, ele até pode compreender o que esteja ocorrendo, mas não consegue analisar todas as possibilidades médias e o alcance dessas consequências, não com a mesma maturidade de um adulto. 

Isso é normal da adolescência e todos já tivemos essa idade e, por mais "maduros" que pensássemos ser, ainda cometíamos erros de julgamento que hoje consideramos banais, idiotas. Qualquer problema era "o" problema, uma questão de vida ou morte. 

Entretanto, em ambas as séries, os dois grupos de adolescentes estão praticamente sozinhos, sem supervisão a agem como jovens adultos, sem os ímpetos e características da juventude, o que estraga o núcleo principal dos seriados. Tanto Os 100 quanto The society pecam no mesmo erro, o que é uma pena

Em Os 100, tivemos conflitos com algumas horas na Terra; mas em The society, foram precisos dias para que os hormônios viesses à tona e os jovens agissem como adolescentes normais, isto é, brigassem discutissem, namorassem, dessem atenção aos seus desejos, sem se preocupar com moral e ética. Nesse sentido, penso que tipo de sociedade vai ser formar, já que a maioria dos jovens se mostra boazinha, sem impulsos e tremendamente racional (dentro dos limites). 

Espero que os próximos 8 episódios, de 1h cada, façam com que eu me arrependa destas críticas iniciais. 

Nos demais seriados, eventos fantásticos impediram que as sociedades primitivas se desenvolvessem normalmente. O campo de observação ficou na vontade, já que, certamente, os roteiristas não tinham experiência neste tipo de situação. 

Porém, ao que parece, em The society, o foco é justamente esse: um mundo sem adultos.

E aqui termino este texto, com uma provocação.

lembrei de mais um mundo semelhante, e com um MAS significativo: a Terra do Nunca.

Em que tipo de sociedade viviam os meninos perdidos, sob a liderança carismática (e única) de Peter Pan? Quais eram as regras? O que era permitido e o que era proibido? Quem tinha o poder de polícia? Quais eram as punições? Os meninos perdidos não eram adolescentes, mas sim crianças, logo, mais alienadas ainda de qualquer norma social. Os adultos eram os piratas e inimigos.

São muitas reflexões...

Até a próxima.

Assim, 

Links:

terça-feira, 28 de maio de 2019

DIREITO PENAL


(IN)IMPUTABILIDADE: premissas teóricas e normativas


Vou tratar da questão da (in)imputabilidade penal em 3 textos.

Dois deles envolvendo a matéria relativa a direito penal e outro sobre as considerações processuais penais.

Começo pelas premissas teóricas do que seja (in)imputabilidade penal.

No texto de hoje, irei comentar brevemente a respeito da notícia veiculada ontem a respeito do homem responsável pela tentativa de homicídio do presidente Jair Bolsonaro, em 06 de setembro de 2019.

Fora as conotações de ordem política, trata-se de um caso a ser analisado cuidadosamente do ponto de vista penal e, em âmbito processual, implica a busca de respostas sobre o que realmente ocorreu naquele dia, por parte dos órgãos de persecução penal.

No dia 06 de setembro de 2019, durante a campanha eleitoral à presidência da República, o então candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro, foi vítima de um atentado contra sua vida, quando fazia um comício na rua, em Juiz de Fora/MG.

Na ocasião, o atacante conseguiu se aproximar do candidato e acertou seu estômago com uma faca. Devido ao pronto atendimento, a vítima conseguiu se salvar, apesar das sérias consequências, tendo permanecido muitos dias sob risco de vida concreto.

Imediatamente, o agressor foi objeto das mais diversas reportagens jornalísticas, sempre em busca dos porquês do atentado, quem seriam os verdadeiros mandantes etc.

Ele foi identificado como sendo Adélio Bispo de Oliveira.

Desde sempre, eu pessoalmente, tinha certeza que Adélio era uma vítima, tanto quanto o candidato. Era visível que um homem comum, no gozo completo de suas funções, não iria fazer o que fez, tamanha a publicidade e segurança ao redor do midiático candidato.

Ademais, ele próprio aparentava possuir problemas mentais, restando, até agora, saber a extensão de suas limitações.

E por que ele seria uma vítima também?

Porque, logo após o ocorrido, sua ação foi enquadrada como sendo um caso de risco à segurança nacional, motivo pelo qual ele foi mantido preso em um presídio federal de segurança máxima, tamanha sua "periculosidade".

Agora, passados mais de  8 (oito) meses do fato, a luz começa a aparecer.

Segundo as informações publicizadas, foram confeccionados 3 (três) laudos médicos, indicando que Adélio seria inimputável. Mas o que quer dizer isso: inimputabilidade?

(In)imputabilidade

Nosso sistema jurídico-penal exige dois requisitos para que uma pessoa seja responsabilizada criminalmente por seus atos, isto é, seja considerada imputável:

a) conhecimento, ciência, de que sua conduta é um crime, algo "errado";
b) possibilidade de agir adequadamente conforme esse conhecimento.
Esses requisitos estão previstos no art. 26 do Código Penal brasileiro:

Inimputáveis

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.  

Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

O primeiro requisito diz respeito a possibilidade de qualquer pessoa compreender o que etá fazendo e que é errado, que sua conduta não é permitida pela lei, pela sociedade.

O segundo relaciona-se à capacidade de, sabendo que uma atitude é errada, agir corretamente por conta própria.

Na prática, os dois requisitos são analisados juntos. Por isso, irei utilizar alguns exemplos para tornar mais clara a ideia de inimputabilidade.

Por que crianças não são punidas quando fazem algo errado?

Porque muitas vezes elas não sabem o que estão fazendo. Elas agem por instinto, por impulso, sem pensar, sem prever suas consequências. E mesmo que consigam antecipar, não acham errado. Elas não têm ideia de que o que fazem não é certo, que é errado. Por isso, castigar uma criança que não compreende o que fez de errado não funciona. Não possui caráter pedagógico, educativo. Ela vai deixar de fazer algo por medo da punição, mas não porque entendeu, aprendeu que não deve mais fazer.

Por que adolescentes não são punidos por seus atos infracionais?

Adolescentes podem ser tratados como "crianças grandes". Alguns sabem o que fazem, mas não possuem o discernimento, a noção completa de todas consequências de seus atos. Não têm ideia do custo, do valor das suas atitudes. E punir um adolescente como um adulto, igualmente, não fará nenhuma diferença, até que ela aprenda os valores de uma sociedade e responsabilidade. Por isso, seus crimes são chamados de atos infracionais e sua punição é regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Hoje, o debate a respeito da diminuição da maioridade penal tem se tornado mais frequente. Nossa legislação considera pessoas com, até 18 anos completos, adolescentes, portanto, serão tratados através do ECA, não importa a gravidade de seus delitos. Um simples furto até mesmo um homicídio qualificado será julgado da mesma forma.

Não irei, aqui, falar deste tema tão complexo, mas é dessa forma que nossa legislação disciplina a questão.

Crianças são completamente inimputáveis, mas adolescentes são semi-inimputáveis e punidos de acordo com suas regras específicas. Esta é a regra do art. 27, do Código Penal.

Depois, vem os episódios de paixão e violenta emoção. Quando agimos por impulso, movidos por uma paixão forte ou uma violenta emoção, somos sim responsabilizados pelo que fazemos. A pessoa que mata o(a) amante após vê-lo(a) com outra pessoa, sob o impulso da ira, fora de si, é culpado sim. O pai que mata o abusador dos filhos etc... Em todas essas histórias, a pessoa tem plena ciência do que está fazendo e escolhe continuar nesse caminho. Isso está previsto no art. 28 do Código Penal.

O quarto caso mais comum de inimputabilidade é o da embriaguez e uso de drogas. Quantas pessoas se desculpam pelo que fizeram afirmando que foi culpa do álcool ou de substâncias proibidas? Infelizmente, aqui, essa "desculpa não cola", porque ninguém fica inteiramente fora de si e é sim capaz de compreender o que faz, embora não queira agir conforme as regras. Este caso de inimputabilidade está disciplinado no art. 28, do Código Penal.


Menoridade penal, embriaguez e violenta paixão/emoção não são casos de inimputabilidade, mas sim problemas mentais e/ou desenvolvimento mental incompleto.

E Adélio Bispo se enquadra neste tipo de previsão legal.

A imputabilidade penal inicia, via de regra, com 18 (dezoito) anos, mas existem inúmeros adultos que possuem problemas mentais ou desenvolvimento incompleto/retardado.

Pessoas totalmente incapazes de compreender o que esteja ocorrendo, logo, não podemos responsabilizá-las por algo que façam. Elas próprias não compreendem, tal como crianças, com com maiores problemas de entendimento. 

Pessoas diagnosticadas com síndrome de down, autistas, com retardo mental e outras doenças inatas têm muita dificuldade, sendo, às vezes, quase impossível, para elas agir normalmente, sem ajuda. Por isso, é preciso se analisar cada caso individualmente.

Elas não podem ser tratadas com o mesmo rigor destinado às pessoas "normais", digo, imputáveis penalmente, porque sua situação jurídico-criminal é diferente, motivo pelo qual é preciso se respeitar essas diferenças. 

Episódio diferente envolve doenças mentais acometidas depois do nascimento, tais como paranoia, esquizofrenia, depressão, bipolaridade, transtornos borderline e outros.

Nesse tipo de caso, por um momento, ou talvez para sempre, a pessoa perde completamente a noção da realidade, da autodeterminação, sendo incapaz de agir de outro modo, mesmo que quisesse. 

Amanhã, quando retomar o tema da (in)imputabilidade, mas sob o ângulo processual penal, irei aprofundar as consequências, o que tornará mais claro o problema relativo a Adélio Bispo, pois, como referi, a (in)imputabilidade é uma questão que precisa ser analisada caso a caso, de acordo com a pessoa, o crime e as circunstâncias de sua ocorrência.

Este tema não pode ser analisado de forma superficial como tem sido feito pela mídia.

Até amanhã.

Links:



segunda-feira, 27 de maio de 2019


DIÁRIO DE UM CRIMINALISTA

O QUE FAZ UM ADVOGADO CRIMINALISTA? pt II


"O advogado criminalista não defende o crime nem o criminoso; ele defende o direito".

"Art. 9º - O advogado deve informar o cliente, de modo claro e inequívoco, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda. Deve, igualmente, denunciar, desde logo, a quem lhe solicite parecer ou patrocínio, qualquer circunstância que possa influir na resolução de submeter-lhe a consulta ou confiar-lhe a causa."

"Art. 23 - É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.

Parágrafo único. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais."

"Art. 43. O advogado que eventualmente participar de programa de televisão ou de rádio, de entrevista na imprensa, de reportagem televisionada ou veiculada por qualquer outro meio, para manifestação profissional, deve visar a objetivos exclusivamente ilustrativos, educacionais e instrutivos, sem propósito de promoção pessoal ou profissional, vedados pronunciamentos sobre métodos de trabalho usados por seus colegas de profissão.

Parágrafo único. Quando convidado para manifestação pública, por qualquer modo e forma, visando ao esclarecimento de tema jurídico de interesse geral, deve o advogado evitar insinuações com o sentido de promoção pessoal ou profissional, bem como o debate de caráter sensacionalista."
(Código de Ética e Disciplina da OAB)

"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"

"Art. 133 - O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei."
(Constituição Federal)

"No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu." (data da aprovação: 03.12.1969)
(Supremo Tribunal Federal - súmula nº 523)

"Art. 34. Constitui infração disciplinar: XXIV - incidir em erros reiterados que evidenciem inépcia profissional"
(Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil)


Inicio o texto de hoje com um reflexão que vem me tomando tempo faz alguns dias, em virtude de minha atuação profissional e que também é uma questão a ser feita por todos que atuem em um processo criminal, não apenas os advogados, mas, especialmente, os demais atores: juízes, promotores, servidores e afins.

O que faz (ou deveria fazer) um advogado criminalista?

Na 2ª temporada de Making a Murderer, uma das teses empregadas pelas defesas dos acusados, de ambos foi a de que, tanto Steven Avery quanto Brendan Dassey, não teriam sido adequadamente defendidos, que a defesa foi fraca, insuficiente diante da gravidade das acusações que foram imputadas aos dois.

No livro O inocente, de John Grisham, que virou a série Inocente, da Netflix, foi reconhecido que o acusado Ron Williamson foi insuficiente defendido, motivo pelo qual seu júri foi anulado, vindo a ter comprovada sua inocência depois.

Em Ponte de espiões, Tom Hanks é um advogado especialista em seguros é nomeado para defender um espião russo. Apesar de não ser sua área de atuação, ele se baseia nos princípios básicos do direito processual penal: é responsabilidade da acusação provar que o réu é culpado e não do cidadão sua inocência. Por isso, ele não se importa em saber se seu cliente é culpado ou não. Ele apenas trabalha com as provas apresentadas.

Em Tempo de matar, também de John Grisham, Matthew McConaughey defende um homem acusado de matar os dois estupradores de sua filha, sendo um acusado confesso. Um negro mata dois brancos, em um estado racista. Seu objetivo é convencer os jurados que, apesar da gravidade do crime, as circunstâncias devem ser levadas em consideração e ele perdoado pela comunidade.

Em 12 homens e uma sentença, um dos jurados não está convencido completamente da culpa do acusado e que existe sim uma dúvida razoável. O restante do filme se foca nos debates a respeito da existência (ou não) dessa dúvida. Para o júri, é preciso que todos os jurados votem no mesmo sentido: culpado (guilty) ou não-culpado (not guilty).

No Brasil, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu que um homem fosse absolvido pelo tribunal do júri, apesar de reconhecer sua culpa. Ele foi perdoado pela comunidade, assim como no filme Tempo de matar (HC 313.251/RJ).

Em How to Get Away with a Murderer, a advogada Annelise Keating é um criminalista de sucesso de professora universitária. Como o próprio nome indica, ela ensina seus alunos a fazerem com que seus clientes sejam declarados não-culpados dos crimes de que são acusados, ainda que responsáveis. No entanto, vez que outra algumas linhas éticas são cruzadas.

Em várias séries e filmes jurídico-criminais, especialmente os norte-americanos, os advogados deparam-se com dilemas éticos, ao descobrirem que seus cliente são culpados, porém, a resposta a tal questionamento é esta: Meu dever é para com meu cliente.

As questões a serem feitas e refletidas dizem respeito aos limites desse dever.

Em Breaking Bad, Walter White precisa encontrar uma forma de justificar o dinheiro que conseguiu com a venda de drogas. Seu sócio, Jesse Pinkman, lembra-se então do advogado Saul Goodman e aconselha Walter: Ele deveria encontrar um criminal lawyer e não um criminal lawyer. Ou seja, ele precisa de um advogado criminoso e não criminal.

Os limites da atuação de um advogado criminalista, e de como ele deveria exercer seu ofício, são origem para muitos questionamentos, especialmente em nossa própria sociedade brasileira, pois o desenvolvimento de nosso sistema jurídico possui algumas características únicas, fruto da cultura brasileira em si.

Todo mundo quer proteger apenas os seus direitos, esquecendo-se dos direitos dos outros.

Eu não sou bandido, sou uma pessoa de bem, não erro, não cometo crime algum, sou um cidadão exemplar, por isso, meus direitos devem ser protegidos.

Logo, se a pessoa foi acusada de um crime, é porque deve ter culpa no cartório. Onde há fumaça há fogo. O crime deve ser combatido. Os direitos dos acusados apenas atrasam a justiça. Criminosos não merecem ter direitos. A condenação deve ser rápida e cruel.

Esses são alguns pensamentos compartilhados pela sociedade brasileira em geral. Não existe um culpado para esse pensamento. O Brasil foi criado dessa forma. Eu mesmo já pensei assim, até parar para pensar: existe algo de muito errado nessa história. O que era?

O Direito não se limita ao direito penal. Existe o direito civil, de família, trabalhista, tributário etc. E todos eles possuem algo de parecido, mas todo mundo apenas lembra do direito penal como aquele que é responsável pelos problemas do dia a dia.

No direito civil, um advogado é contratado para cobrar uma dívida e o devedor contrata outro advogado para não pagar essa conta. Por que ninguém critica o devedor?

No direito tributário, o Estado cobra o pagamento de impostos e o devedor contrata um advogado pata também não pagar seus tributos. Por que ninguém critica o sonegador?

No direito de família, a mãe contrata um advogado para cobrar a pensão do pai ausente e que não assume o filho. O pai contrata um advogado para não pagar o que deve. Por que ninguém critica o pai irresponsável?

No direito do trabalho, um empregado demitido sem justa causa contrata um advogado para buscar seus direitos e o patrão contrata outro advogado para não pagar esses direitos. Por que ninguém critica a empresa que explora seus empregados?

Porque nossa sociedade considera "normal" não pagar uma dívida, não honrar compromissos, postergar obrigações etc, contudo, é um pecado cometer um crime. Tudo pode ser levado em consideração, menos um delito. Será mesmo?

Essa pergunta não será respondida aqui. Ela é um excelente problema de criminologia, Aqui, irei começar comparar as situações acima mencionadas.

Não quero convencer ninguém, mas criar a dúvida para cada um pensar por si.

Primeiro: ninguém está livre de um crime.

“E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.”
(João 8:7)

Nossa legislação prevê centenas de condutas que podem ser chamadas de criminosas. É quase impossível saber de todas e evitar o cometimento de uma que outra. Muitas vezes, cometemos crimes sem saber que são delitos e não o fazemos de propósito. Mas, para todo os fins, somos criminosos, até provarmos nossa culpa.

Contudo, apenas nos importamos com os crimes graves e que nos afetam diariamente, como homicídio, furto/roubo, estupro, extorsão, tráfico, corrupção etc. O resto é resto.

Segundo: qual é a diferença entre um crime e uma dívida?

Não existe juridicamente uma diferença entre eles.

Quando duas pessoas fazem um acordo, assinam um contrato, cada uma assume obrigações e deveres para com a outra. Estabelece-se uma confiança entre todos.

A pessoa que não cumpre sua parte não merece confiança e precisa cumprir o que foi acordado. A pessoa traída tem direito a receber o que é seu e por isso contrata um advogado para buscar seus direitos, assim como o empregado que trabalha e não recebe todos os seus direitos, pois seu patrão o explora e recebe todo o lucro. O filho que não recebe pensão do pai não tem culpa dos problemas entre seus genitores e o pai sabe que é sua obrigação cuidar do filho, por isso ele busca um advogado.

O estado, contudo, precisa de um processo para que uma pessoa não seja culpada sem provas. Quantas pessoas inocentes já foram presas e condenadas sem provas?

Para isso existe um processo.

Quem nunca foi considerado culpado de alguma coisa que nunca fez? Não existe sensação pior do que a da injustiça?

Ser civilizado é isso: é reconhecer que o outro, que o colega, o irmão, o vizinho, o amigo etc também são pessoas como eu, como tu e que os mesmos direitos que eu tenho, que nós temos, o outro também têm.

Se eu não gosto de ser punido injustamente, o outro também não.

Esta é apenas uma reflexão introdutória deste tema que irá render outros textos.

Links:

Constituição Federal

Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

Supremo Tribunal Federal - súmula nº 523

domingo, 26 de maio de 2019

DOMINGOU... COM CIÊNCIAS CRIMINAIS

POR QUE DEVORAR MAKING A MURDERER? pt II

Introdução à 2ª temporada

Boa noite.

Hoje, volto a uma das pautas prometidas por um dos textos anteriores e que estou prometendo faz um tempo.

Irei retomar o tema de Making a Murderer, que tanto comentei aqui, neste blog.

Agora, o foco é a 2ª temporada.

Como o propósito deste blog é fazer um exame jurídico-penal do programa, é preciso levar em consideração alguns fatores primordiais.

1. Não se trata de um seriado de ficção, mas sim um documentário, portanto, ele trabalha com casos reais, pessoas reais, problemas e dramas reais, de forma nua e crua.

2. Esta temporada não pode ser entendida como a continuação da anterior, mas sim como a 2ª parte de uma grande história que ainda não terminou.

3. Pode-se assistir, perfeitamente, a esta temporada sem ter visto a primeira antes, porém, a percepção ficará incompleta a respeito da complexidade do todo.

Na 1ª temporada, acompanhamos o julgamento de Steven Avery e seu sobrinho Brendan Dassey, acusados e condenados pela morte de Teresa Halbach.

A temporada constituiu-se de uma inteligente montagem de filmagens dos dias do julgamento, de vídeos feitos pelos defensores dos acusados e de reportagens de jornal.

O documentário estreou em 2015, mas o julgamento ocorreu em 2007, portanto são quase 10 anos de arqueologia atrás do material original, entrevistas com os envolvidos e toda a burocracia.

A 2ª temporada, por sua vez, teve mais "sorte".

Ela estreou ano passado, em 2018 e pôde acompanhar, quando de sua confecção, diretamente, os desdobramentos do caso, envolvendo ambos os personagens principais.

E é nesse tratamento especial e individual do destino específico de Steven e de Brendan que reside os principais elogios desta temporada.

Entretanto, cada um deles será objeto de um texto próprio, pois pretendo fazer uma breve explicação jurídica do que ocorreu em cada uma das histórias.

Em âmbito jurídico, são fascinantes os caminhos trilhados por cada um dos acusados, já que, embora tenham sido denunciados e condenados pelo mesmo crime, seus julgamentos foram completamente diferentes entre si, o que rende elevados debates em âmbito processual.

O leigo pode até compreender o que ocorreu, mas um profissional do Direito, especialmente do direito penal e, mais especialmente, um processualista penal, verá que cada passo desse julgamento, e ele como um todo, não é brincadeira de criança, isto é, amadores, turistas e aventureiros não deveriam se aproximar desse problema.

Por isso, desde já, peço desculpas se irei me estender demais nas próximas semanas fazendo uma análise apurada da 2ª temporada, com o uso de alguns termos técnicos.

Não é possível para um jurista criminal assistir Making a Murderer sem vê-lo com os óculos das ciências criminais, interpretando cada fato novo sob a ótica do direito.

Não é entretenimento puro e simples, mas sim um exercício avançado de teoria.

Hoje, é possível se acompanhar a "3ª temporada" diretamente pelo Google.

O caso não avançou muito depois do final desta temporada.

Esperemos.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

QUINTA-FEIRA DE RODADA DUPLA


2º ROUND: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Não pretendo entrar no mérito do julgamento, já que ele ainda não terminou, mas, como jurista e criminalista, estou profundamente decepcionado, mais uma vez, com o Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria ser a Corte Máxima brasileira, exemplo a ser seguido.

Porém, pensando bem, ela é um exemplo que é seguido pelos demais tribunais do país.

Se o STF pode fazer o que faz, as instâncias superiores copiam.

Não é preciso se respeitar a Constituição Federal, a Lei Maior de nosso país, que determina como as coisas deveriam ser.

Infelizmente, um ditado comum no meio jurídico é cada dia mais real: a Constituição é o que o Supremo diz que é.

Não importa o que esteja escrito; se o STF entende outro sentido, esse é que prevalece.

Recentemente, uma dessas decisões tristes foi tomada quando se autorizou o cumprimento antecipado da pena de prisão antes do fim do processo. Nossa Carta magna é bem clara ao prever que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença. É impossível se entender de outra forma essa frase.

Contudo, hoje, dia 23 de maio de 2019, novamente, estamos diante de mais um exemplo da falta de competência jurídica de nossos ministros, que deveriam ser o que há de melhor entre os juristas brasileiros, aqueles a quem se espelhar.

O que diz nossa Carta Política:

Art. 5º, 
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

O que isso quer dizer?

Que ninguém poderá ser condenado criminalmente por uma conduta que uma LEI não diga que seja um delito.  

Ou seja, apenas o Poder Legislativo, através do Congresso (deputados e senadores) pode determinar se uma ação é crime ou não, não importa a gravidade.

Isso se chama garantia da legalidade penal.

Ela serve para que nós, cidadãos, possamos saber o que é crime ou não, sem se preocupar com o que o juiz vai decidir. Basta ler a lei. E, por consequência, não podemos ser penalizados pelo que não é crime.

Até hoje.

Nossa Constituição Federal, como uma lei, já tinha previsto que racismo era um crime.

Não existe dúvida de que seja racismo. Preconceito decorrente da cor da pele, especialmente se a pessoa for preta, fruto de anos de escravidão no Brasil e todo o histórico decorrente.

Ninguém pode ser tratado de forma diferente por causa da cor da pela, por isso, o racismo foi considerado um crime previsto na Constituição e tratado de forma mais severa.

Contudo, não existia, ainda uma lei de racismo, que disciplinasse o que constituiria racismo e a pena respectiva. Por isso, ninguém poderia ser punido por racismo criminalmente.

Então, em 5 de janeiro de 1989, foi editada a Lei nº 7.716, que regulou este crime.

Respeitou-se a garantia da legalidade, um dos pilares de qualquer democracia.

Agora, o que ocorreu em Brasília hoje?

Hoje, boa parte do que se aprende sobre Direito Penal, as regras mais básicas, foi jogada no lixo. O Direito é uma ciência, mas, aqui, nada mais foi respeitado.

Segundo a garantia da legalidade, apenas a conduta descrita em lei é crime e ninguém pode ser punido por comparação, por analogia.

Ou a conduta é ou não é crime. Simples assim.

Porém, hoje, o STF atendeu ao clamor de uma parcela específica da população e considerou a homofobia um delito, mesmo sem previsão legal. Sem lei que diga que sim.

Um partido político e algumas associações ajuizaram uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão afirmando que o Congresso estaria violando direitos dos grupos LGBT... ao não criminalizar a homofobia e que, por isso, deveria ser utilizada a lei de racismo no seu lugar, até que esse crime fosse disciplinado pelo Legislativo.

Segundo o STF, a orientação sexual (hétero, homo, bi...) pode ser tratada como a raça de cada um (branco, preto, amarelo, índio...), pois ninguém a escolhe e simplesmente nasce assim, não podendo, por isso, sofrer qualquer discriminação.

E que o Congresso, propositalmente, estaria sendo omisso ao não criminalizar essa conduta, essa discriminação.

Então, para quando ocorrer um caso de homofobia, será utilizada lei do racismo, com as condutas e penas ali previstas.

O Congresso poderá criar uma lei específica para homofobia, mas nunca mais descriminalizar, já que o STF já determinou ser um crime.

Como mencionei, não vou adentrar no mérito do julgamento e dos argumentos. A discussão seria muito longa e cada um teria sua opinião.

Porém, é de se pensar o seguinte:

O que impede, hoje, que o Supremo Tribunal Federal, não resolva criminalizar outra conduta do dia a dia, porque os 11 (onze) ministros, por pura opinião pessoal, pensem que deve ser assim? Até o ato mais ordinário, mais comum do dia a dia pode ser considerado um crime amanhã sem que exista uma lei tratando-a como um crime.

Em uma república, especialmente, em uma democracia, é preciso se respeitar as instituições. Nós, cidadãos, devemos respeitá-las e elas entre si.

O Legislativo é o corpo de deputados e senadores que foram eleitos para nos representar e criar as leis que vão reger nosso país.

A Constituição é a lei das leis e ninguém pode "passar por cima" dela, até mesmo o Legislativo. 

O Judiciário é um corpo de funcionários públicos concursados que deveria apenas aplicar a lei ao caso concreto, respeitando a legislação criada pelo Legislativo e as normas fundamentais da Lei Maior.

Infelizmente, a cada dia, por omissão do próprio Legislativo, que deixou de fazer seu papel, o Judiciário está assumindo esse espaço, porque ele é obrigado a julgar toda causa que lhe é apresentada, inclusive, esta em debate.

E o Judiciário também está a cada dia mais sendo infectado pelo clamor público e a necessidade de "mostrar serviço" à população. 

Porém, nós como cidadãos, deveríamos ser mais ativos e criticar qualquer medida que se mostre contrária aos pilares da República.

Aqui, o Poder Judiciário está, mais uma vez, criando leis, com desculpas fajutas e sem fundamento. E nosso Congresso, novamente, fica apenas assistindo, parado a usurpação de suas funções constitucionais.

Compete, agora, ao sistema como um todo, acompanhar os desdobramentos dessa decisão que, certamente, ainda irão render muitas discussões.

Os grupos LGBTQ... procuraram o STF em busca da defesa de seus direitos, correto?

Então, esses mesmos grupos deveriam fazer uma autocrítica sabendo que a busca desses direitos, tal como foi posta, desrespeita o direito deles próprios e de todo um país.

Já dizia o ditado que corre em Brasília:

"Pau que bate em Chico (não) bate em Francisco"...

Hoje, sou Francisco, mas amanhã posso ser Chico.

Fica a reflexão...

Links:

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/23/maioria-do-stf-vota-a-favor-da-criminalizacao-da-homofobia.htm

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/23/politica/1558635166_112275.html

https://g1.globo.com/politica/ao-vivo/stf-retoma-julgamento-que-pode-criminalizar-a-homofobia.ghtml

FELIZ ANIVERSÁRIO!!! Hoje, a postagem será singela. O blog está fazendo 1 ano de vida nesta data: 01 de abril de 2020. Não pode...